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Opinião Sábado, 20 de Maio de 2023, 07:00 - A | A

Sábado, 20 de Maio de 2023, 07h:00 - A | A

Opinião

Caso Aracelly, 50 anos de impunidade

Por Ahmad Schabib Hany*

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Aracelly Cabrera Sánchez Crespo, menina de apenas 8 anos, filha de imigrante boliviana residente em Vitória (ES), foi vítima de rapto seguido de estupro e morte com requintes de crueldade. Nos anos de chumbo (1973), os autores, ‘filhinhos de papai’ (um empresário capixaba e seu sobrinho e um serviçal do regime), não pagaram pelo crime, mas o Jornalista José Louzeiro, que denunciou o crime e os criminosos em “Aracelly, meu Amor”, ele, sim, foi preso por driblar a censura e escrever um romance-reportagem.

 

Aos 8 anos (faria 9 em julho de 1973), a inocente Aracelly Cabrera Sánchez Crespo, filha de imigrante boliviana nascida em São Paulo em 1964, foi vítima da pior violência que uma menina poderia ter: abordada ao sair da escola por um grupo de ‘cidadãos de bem’ (ou ‘de bens’?), foi sequestrada, estuprada, dilacerada a dentadas, o corpo desfigurado por ácido corrosivo e jogado aos fundos de um hospital infantil de Vitória, capital do Espírito Santo.

Acervo pessoal

Ahmad Schabib Hany - Artigo

Ahmad Schabib Hany


Se, por si só, o crime é brutal pelos requintes de crueldade com que foi cometido, o pior é que as autoridades responsáveis pela elucidação do crime e condenação dos autores -- três ‘filhinhos de papai’, conhecidos por violentar adolescentes: um grande empresário capixaba e seu sobrinho e um serviçal do regime de 1964, Paulo Helal, Dante Michellini e Dante Barros Michellini --, fizeram questão de prevaricar a despeito da pressão popular exigindo justiça.

Condenados na primeira instância, esses criminosos foram absolvidos impunemente na segunda instância, e apenas quem foi preso arbitrariamente foi o Jornalista José Louzeiro, por ter conseguido driblar a censura e ter publicado o emblemático romance-reportagem “Aracelly, meu Amor”, em 1976. Décadas depois, o livro vira filme bastante comentado. Mas nunca foi feita justiça: um verdadeiro incentivo à misoginia e ao hoje bastante praticado feminicídio.

O episódio, bastante emblemático, repercutiu em todo o mundo, ainda que a mãe da vítima tenha, além da perda da filha, sofrido linchamento moral por todos os lados. Ela, segundo os investigadores (policiais, peritos e repórteres de renome) que elucidaram o caso quase 50 anos atrás, trabalhava como narcotraficante, tendo usado a filhinha em algumas oportunidades, por isso era conhecida pelos criminosos.

Dez anos depois, houve uma tentativa de rever esse crime bárbaro, mas idas e vindas do processo acabaram por frustrar a reabertura do processo, afinal, os membros da elite capixaba tinham estreitas relações com figuras influentes, como o então vice-líder da ARENA (partido de sustentação do regime de 1964), senador Eurico Rezende, do Espírito Santo, cujo filho também esteve às voltas com outro crime hediondo, Caso Ana Lídia, ao lado do filho do então ministro da Justiça do mais terrível dos ditadores desse ciclo, Alfredo Buzaid, que, como fascista de carteirinha (na juventude membro ativo da Ação Integralista Brasileira, fiel seguidor de Plínio Salgado), ao final do período ditatorial de Emílio Médici, foi presenteado com a nomeação como ministro do Supremo Tribunal Federal (STF).

Tanto no Caso Aracelly como no Caso Ana Lídia, ambos envolvendo protegidos do regime militar em seu período mais sombrio, no ano derradeiro do período de Médici, há evidências da utilização da máquina administrativa para blindar seus aliados e filhos da cobertura da imprensa, como prova este ‘recado’ dado à imprensa em 1973: “De ordem superior, fica terminante proibida a divulgação através dos meios de comunicação social escrito, falado, televisado, comentários, transcrição, referências e outras matérias sobre o caso Ana Lídia e Rosana. -- Polícia Federal.”

Não é casual a compulsão do inominável e seus abjetos colaboradores mais próximos pelas repulsivas tentativas de amordaçar o jornalismo investigativo e as instituições da República com tradição de independência, por reiteradas vezes: idolatras de Médici, Ednardo D’Ávila Mello, Hugo Abreu e Sylvio Frota (aquele genereco que tentou dar um golpe sobre Ernesto Geisel para conseguir que um dos seus fosse o próximo da lista na sucessão, sem eleições, que acabou indicando o atabalhoado e impulsivo João Baptista de Oliveira Figueiredo, o derradeiro general-presidente do ciclo militar, e para o qual Augusto Heleno trabalhou), todos eles têm ranço das liberdades democráticas e gostam da impunidade, tanto que era recorrente o mantra “aos amigos tudo, aos inimigos a lei”.

Em 2000, o Congresso Nacional homenageou a memória de Aracelly e, num gesto de luta contra a impunidade dos criminosos, instituiu o Dia Nacional de Combate à Exploração e ao Abuso Sexual de Crianças e Adolescentes. Antes, Mato Grosso do Sul, pioneiro no enfrentamento a esse crime, havia instituído o dia 6 de outubro o Dia Estadual, em que a sociedade civil, inclusive em Corumbá e Ladário, se mobilizava desde 1997. Em nível local, foi emblemática a fala da Professora Luciene da Costa Cunha, coordenadora do CAIJ-CRIPAM que, quando adolescente, integrou a comissão infanto-juvenil que entregou ao então presidente José Sarney a minuta do que viria a ser mais tarde o Estatuto da Criança e do Adolescente, logo depois da conclusão dos trabalhos da Assembleia Nacional Constituinte.

A Professora Luciene Cunha, pioneira na luta contra a exploração e o abuso de crianças e adolescentes, lembrou a impunidade que estimula o cometimento de crimes dessa natureza, tendo lembrado do Caso Aracelly Crespo e o Caso Sophia de Jesus Ocampo, em Campo Grande, ocorrido em 2022, que se encontra nas primeiras audiências judiciais. É, também, oportuno recordar que o desaparecimento da menina Lívia Gonçalves Alves, de 7 anos, em junho de 2010, ainda não foi elucidado, embora haja vestígios de que tenha sido vítima de uma rede de pedofilia. Na época, o incansável combatente Anísio Guilherme da Fonseca, então presidente do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente, articulou uma força-tarefa de entidades não governamentais em nível estadual, mas seus esforços terminaram na questionável destituição de seu cargo, além da exclusão do Fórum Permanente de Entidades Não Governamentais de Corumbá e Ladário (FORUMCORLAD) dos processos autônomos e independentes de eleição dos membros não governamentais de todos os lócus de controle social de nossa região.

A impunidade, como disse a Professora Luciene Cunha e durante anos a Assistente Social Estela Márcia Rondina Scandola ensinou com pioneirismo (lá nos idos de 1990, ao lado do querido e saudoso Padre Pasquale Forin), é o principal fator da recorrência e nos últimos crescimento vergonhoso dessa mazela social que rouba a inocência de nossa infância e atormenta famílias e, em especial, mulheres. Em memória de todas as vítimas desse crime impune, é necessário o engajamento de toda a cidadania, a exemplo da luta incansável da Professora Luciene e dos anônimos voluntários que insistem na construção da rede de proteção jurídico-social da população infanto-juvenil. A sociedade que não protege a inocência e a integridade de sua infância e juventude está condenada à barbárie, ambiente ideal para o nazifascismo e o crime organizado que tiveram um crescimento exponencial nestes tempos sombrios pós-golpe de 2016.

 

 

*Ahmad Schabib Hany
Revisor, tradutor e produtor de texto, membro fundador da OCCA Pantanal (Organização de Cidadania, Cultura e Ambiente), entidade sócio-ambiental sediada no coração do Pantanal e da América do Sul), formada por membros remanescentes da Ação da Cidadania Contra a Fome, a Miséria e Pela Vida, inspirada pelo sociólogo Herbert de Souza, o saudoso Betinho. Membro articulador do Pacto Pela Cidadania (Movimento Viva Corumbá) e do Fórum Permanente de Entidades Não Governamentais de Corumbá e Ladário (FORUMCORLAD), de cuja coordenação colegiada sou integrante.

 

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