“Os dias passam arrastados, mas a vida passa voando.”
Aos 42 anos, ele descobriu que a vida é, no fundo, um grande trote. Desses que te ligam oferecendo um prêmio de uma televisão que nunca chega, com voz de call center e música ambiente de saxofone eletrônico.
Quando era adolescente — na fase das ideias mirabolantes, cabelo ensebado e certezas absolutas — diziam que ele era diferente. “Esse menino vai longe”, falava a tia, segurando firme o controle remoto como se aquilo fosse uma prova de sabedoria.
Ele, claro, acreditou. Achava que ir longe significava virar empresário milionário antes dos 30, talvez fazer uma palestra no TEDx de alguma cidade com aeroporto, usar camisa social com punho dobrado e dizer frases de efeito como: “quem não vive pra servir, não serve pra viver.”
Ele só não sabia que “ir longe” ia significar sair da cidade natal, abrir um negócio que quebrou antes mesmo de trocar a titularidade no contrato social, e passar o resto da vida tentando voltar — pelo menos — ao patamar de salário que tinha antes de “seguir seus sonhos”. Empreender, aliás, essa palavra bonita que na prática significou pra ele: vender o próprio sofá na OLX pra pagar o contador e ainda ouvir do pai um “eu te avisei” carregado de razão mal disfarçada.
A verdade é que ele nunca foi burro. Muito pelo contrário: inteligente, criativo, carismático. Só não era constante. Tentou três faculdades: Administração (desistiu dizendo que era tudo teoria e pouca prática), História (saiu alegando que precisava focar em algo mais “rentável”), e agora, aos trancos, trancou o curso de TI (a desculpa foi que não dava pra conciliar com o trabalho, mas no fundo ele odiava algoritmos).
Sempre que abandonava um curso, tinha a desculpa perfeita na ponta da língua.
Diz que coleciona um diploma por tentativa e uma crise existencial por matrícula.
O auge da carreira — se é que isso foi mesmo um auge — foi quando conseguiu uma promoção decente, um salário bom e um crachá com foto em que ele parecia sério e responsável. O preço? Mudar de cidade e deixar de morar com os pais, o que ele descreve até hoje como "a última vez que eu dormi sem preocupação no fígado".
Foi também quando teve a brilhante ideia de pedir demissão para abrir uma empresa com um conhecido da academia que dizia ter contatos na prefeitura.
O conhecido sumiu. Os contatos também. E ele passou os meses seguintes vendendo livros antigos, um violão, e até o videogame da infância para manter o aluguel do coworking — que chamava de “escritório” pra dar um ar de seriedade.
Casou-se nessa cidade nova. Mulher inteligente, pós-graduada, trabalha meio período e ganha três vezes o que ele ganha sorrindo e sem suar. Ela nunca jogou isso na cara. Mas também nunca precisou.O silêncio dela no fim do mês, mexendo nas planilhas do orçamento, soa como uma marcha fúnebre do ego dele. Ele finge não perceber. Abre a geladeira, toma água direto do filtro e murmura: “um dia ainda acerto a mão.” Ela revira os olhos. O cachorro suspira. A filha pequena grita no fundo: “papai, caguei!”
Ama os filhos com uma ternura aflita. O mais velho, de um relacionamento do fim da adolescência, já está com 23 e ainda pede o valor do aluguel e mais alguma ajuda pra uma despesa extra da faculdade no mês anterior. Ele transfere o dinheiro e manda um áudio seco com um "vê se organiza melhor isso aí, hein." No fundo, sabe que está falando com a versão mais jovem de si mesmo — vinte anos tarde demais. O mais novo gosta de desenhar. A do meio quer ser cantora. E ele quer… bem, ele ainda não sabe.
Outro dia disse para um amigo:
“Meu maior sonho é não ter mais sonhos, só boletos pagos.”
O amigo riu. Ele não.
Os dias seguem. Acorda cedo, enfrenta o trânsito, finge entender planilhas, sorri para o chefe que leu dois livros de autoajuda e acha que virou guru do Vale do Silício. Almoça marmita no carro porque o refeitório é quente demais e cheio de gente que ainda acredita em metas.
À noite, coloca a filha pra dormir. Ela insiste em contar os dedinhos dos pés antes de fechar os olhos. Isso o desmonta. Porque é ali, entre o cheirinho de shampoo infantil e as perguntas improváveis (“papai, os gatos têm umbigo?”), que ele sente que, talvez, só talvez, não tenha sido um fracasso completo.
Talvez a promessa não tenha virado gênio… Mas virou pai. Virou marido. Virou alguém que ainda tenta. Mesmo que tudo dentro dele só queira sentar num canto e pedir um café bem forte com uma dose de “onde foi que eu errei?”.
No fundo, ele sabe.
A vida passou voando. Mas ele ainda tá na fila do embarque, com a mala meio aberta, meia suja e o passaporte vencido.
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