Quando alguém quer criticar nosso sistema eleitoral, costuma mencionar a eleição do palhaço Tiririca. Em 2010, ele recebeu cerca de 1,35 milhão dos quase 100 milhões de votos válidos para deputado federal. Graças a nosso sistema eleitoral, o palhaço teve 1,35% de todos os votos nacionais – e carregou, com sua votação, outros três deputados que não seriam eleitos, não fosse o empurrãozinho. Esse exemplo é sempre citado para demonstrar as distorções geradas por nosso sistema eleitoral proporcional (que distribui as cadeiras parlamentares na proporção das votações obtidas por cada coligação partidária) – e usado como argumento por aqueles que defendem o voto distrital (que divide o território do país em distritos, cada um com uma cadeira parlamentar).
Mas as distorções geradas pelo voto distrital são ainda maiores. Em 2010, na Grã-Bretanha, país em que vigora o sistema distrital, o partido Liberal-Democrata teve 23% dos votos nacionais, mas elegeu somente 8,8% dos deputados. Isso significa que 14,2% dos votos de todos os britânicos ficaram sem representante. Esse é um resultado típico do voto distrital. Ele joga no lixo uma enorme quantidade de votos, bem mais que o 1,35% de Tiririca. Tais eleitores ficam sem nenhuma representação parlamentar. É assim que funciona o voto distrital: ele exclui da representação todos os partidos menos dois: o governista e o oposicionista. Não há pluripartidarismo com o voto distrital.
Outra consequência direta do voto distrital é contribuir para que os políticos se protejam em distritos cada vez menos competitivos. Entre 1944 e 1950, 152 deputados federais dos Estados Unidos, outro país que adota o voto distrital, perderam a reeleição que disputavam em seus distritos. Entre 1954 e 1960, esse número caiu para 100 derrotados. E ele vem caindo desde então, atingindo a marca de apenas 47 deputados que não foram reeleitos entre 2004 e 2008. Isso significa que a taxa de renovação da Câmara dos Deputados americana hoje é de apenas 10% – no Brasil, ela está em torno de 50%. E é falso argumentar que os eleitores estão felizes com seus representantes, pois as pesquisas mostram um enorme nível de insatisfação com os políticos.
São muitas as evidências de que o voto distrital resulta na formação de feudos eleitorais e na consequente falta de competitividade nas disputas. Nos Estados Unidos, na eleição de 2002, 81 dos 437 distritos registraram apenas uma candidatura. Para praticamente 20% da câmara, o eleitor não teve escolha. Ainda mais grave do que isso: na eleição de 2004, 85% dos deputados americanos foram eleitos com mais de 60% dos votos em seus distritos. No Brasil, quando alguém vence com 60%, está configurada uma surra eleitoral – que nada mais é que falta de competitividade.
Os exemplos de formação de feudos podem ser multiplicados. Em 2002, os deputados federais da Califórnia fizeram um acordo: graças ao redesenho dos mapas eleitorais, cada deputado do Estado ficou com um distrito onde sua vitória era certa. Resultado: todos os 50 deputados daquele Estado foram reeleitos. Também em 2002, na Califórnia, quase 60% dos deputados venceram com mais de dois terços dos votos. O acordo da Califórnia poderia facilmente ser reproduzido em inúmeros Estados brasileiros, se adotássemos o sistema distrital.
O dispositivo usado para adequar as fronteiras dos distritos aos interesses dos partidos é conhecido em inglês como gerrymandering. O nome dessa prática remonta ao ano de 1812, quando o então governador de Massachusetts, Elbridge Gerry, desenhou vários distritos eleitorais que, reunidos, lembravam a forma de uma salamandra. Com esse tipo de expediente, os limites de um distrito são redesenhados de tal maneira que um determinado candidato seja facilmente eleito e reeleito na região (leia o quadro abaixo). Todos os países que adotam o sistema distrital sofrem, em maior ou menor grau, com a deformação do gerrymandering.
Nos Estados Unidos, há até um programa de computador, chamado Maptitude for Redistricting, que permite a qualquer deputado desenhar um distrito onde sua reeleição se torne praticamente certa. O quadro ao lado mostra um entre centenas de distritos desenhados de acordo com o gerrymandering, o quarto distrito de Illinois. Ali, duas regiões hispânicas estão unidas por 2 quilômetros de estrada sem um eleitor sequer. Nesse distrito, qualquer candidato democrata é eleito, até mesmo um poste. Não se trata de um fenômeno isolado. A grande maioria dos distritos nos EUA é desenhada de acordo com o gerrymandering. Caso o Brasil adotasse o voto distrital, os políticos brasileiros seriam tão ou mais criativos que seus congêneres americanos.
Um efeito ainda mais direto do voto distrital é o bipartidarismo. Tanto Grã-Bretanha quanto Estados Unidos são países bipartidários, e os dois maiores partidos franceses concentram 85% das cadeiras de deputados. Quando isso acontece, todos os cargos de direção na mesa da Câmara e nas comissões legislativas são controlados pelo partido majoritário. O bipartidarismo é resultado de – e resulta no – conflito. Não há composições, nem meios-termos ou acordos, pois não há partido de centro. A profunda divisão na sociedade americana entre democratas e republicanos pode ser vista como uma consequência perniciosa do bipartidarismo, que acirrou paixões e deixou pouco espaço à razão.
No mundo todo, é possível atestar a enorme superioridade do voto proporcional diante do distrital. Desde 1993, 12 países abandonaram o sistema distrital puro e adotaram algum tipo de voto proporcional. Desses 12, cinco saíram do distrital puro e foram para o proporcional puro. Um desses países foi a África do Sul. A Rússia, que era inteiramente distrital, mudou para metade distrital e metade proporcional. E apenas um país desde 1993 abandonou o voto proporcional: Madagascar. A reforma do sistema foi feita pelo partido dominante, chamado Eu amo Madagascar. Ele hoje controla 103 das 160 cadeiras da Câmara. Hoje, em Madagascar, quem define os limites geográficos dos distritos é o presidente. Um prato cheio para o gerrymandering.
Por fim, os defensores do voto distrital dizem que ele aproxima o eleitor do eleito. Os estudos científicos sobre o assunto mostram que não há diferença nesse aspecto no que diz respeito aos sistemas eleitorais. A afirmação de que o voto distrital torna o representante mais próximo do representado não se sustenta pelas evidências empíricas. Todas elas comprovam que, se o Brasil viesse um dia a adotar tal sistema, como tantos têm defendido, as palhaçadas superariam em muito a eleição de Tiririca. (Fonte: Alberto Carlos Almeida/ Revista Istoé)
ALBERTO CARLOS ALMEIDA é cientista político, autor dos livros A cabeça do brasileiroe O dedo na ferida: menos imposto, mais consumoalberto.almeida@instituto
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