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Quarta-feira, 03 de Julho de 2019, 16h:44

Como Cortázar escreveu sobre a própria vida em Jogo da Amarelinha

Por Débora Ramos

Da coluna Educação e Carreira
Artigo de responsabilidade do autor

Reconhecido como um dos melhores contistas da literatura moderna, o escritor argentino ficou famoso nos anos 1960 por uma obra que protestava contra o gênero romance

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Jogo da Amarelinha, do escritor franco-argentino Julio Cortázar, é considerado por muitos críticos vários livros de um livro. A trama, que conta a história de Horácio Oliveira, se tornou uma das obras centrais do boom da literatura latino-americana nos anos 1960 por ser, principalmente, um questionamento a tudo: desde o mundo editorial até a própria linguagem literária.

"De alguma maneira é a experiência de toda uma vida e a tentativa de levá-la à literatura", disse o autor em uma entrevista ao programa A fondo, do jornalista espanhol Joaquín Soler Serrano na TVE, no final dos anos 1970.

O romance, um dos primeiros das obras surrealistas da literatura latino-americana, foi escrita em Paris, na França, e publicada pela primeira vez em 28 de junho de 1963 pela lendária editora Sudamericana.

Julio Cortázar nasceu na Bélgica, mas se registrou como argentino e morreu como francês. Acadêmico, escritor e tradutor, ele só recusou a nacionalidade do país sul-americano que tanto amava em 1981, como uma forma de protesto ao regime militar de Leopoldo Galtieri. Três anos depois, em fevereiro de 1984, ele morreria em Paris -- outra cidade pela qual era encantado --, apagando uma das vozes mais originais e vanguardistas do século 20. Sua imagem atual, com armações grossas e uma barba espessa diante dos livros do seu apartamento parisiense, é quase um resumo da figura do escritor intelectual contemporâneo.

Com fortes influências surrealistas, há ao menos quatro formas de ler Jogo da Amarelinha: em ordem cronológica, do princípio ao fim, seguindo a ordem dos capítulos até o 56 -- proposto por Cortázar --, ou saltando entre capítulos de acordo com o guia entregue ao leitor no início do romance, ou como a pessoa quiser. Oliveira, segundo a revista de literatura uruguaia Brecha, se tornou um símbolo para os leitores jovens, românticos e idealistas. Sobre sua origem, distintas cartas escritas à mão por Cortázar dão conta da ambição e do alcance do projeto.

"Terminei um grande romance que se chama Os Prêmios, que espero que vocês leiam um dia", escreveu Cortázar em uma carta dirigida ao seu amigo Jean Barnabé, escritor e linguista martiniquenho, em dezembro de 1958. "Quero escrever outro, mais ambicioso, que será bastante ilegível. Quero dizer que não será o que se entende por um romance, mas uma espécie de resumo de muitos desejos, de muitas noções, de muitas esperanças e também, por que não, de muitos fracassos", completa.

Em outra carta dirigida a Barnabé tempos depois -- e que hoje está em posse do Ministério da Educação da Argentina, Cortázar revela que "a verdade, a triste ou bela verdade, é que cada vez gosto menos dos romances, da arte romanesca tal como se pratica nestes tempos. O que estou escrevendo agora será (se eu conseguir terminar) algo como um anti-romance, a tentativa de romper os moldes com que se petrifica o gênero".

Em agosto de 1960, três anos antes da publicação de Jogo da Amarelinha, Cortázar escreveu outra carta ao editor espanhol Paco Porrúa, dando mais dicas sobre sua obra. "Ignoro como e quanto vou terminá-la, tenho cerca de 400 páginas que abarcam pedaços do fim, do começo e do meio do livro, mas talvez eles desapareçam diante da pressão de outras 400 ou 600 que terei que escrever entre esse ano e o que vem. O resultado será uma espécie de almanaque, não encontro uma palavra melhor. Uma narração feita de múltiplos ângulos, com uma linguagem às vezes tão brutal que até eu mesmo me recuso a reler -- e duvido que me atreva a mostrá-la a alguém; e outras vezes tão puro, tão pouco literário. O que eu sei do que vai sair?".

O tom do autor mudaria com Jogo da Amarelinha quando o livro estava perto de ser terminado. Em uma carta dirigida ao poeta estadunidense Paul Blackburn, enviada em maio de 1962, ele conta em primeira mão ao amigo que está no fim da escrita. "Está quase pronto. Como uma espécie de livro infinito (no sentido de alguém seguir e seguir adicionando partes até morrer), penso que é melhor eu me separar brutalmente dele. Vou lê-lo uma vez e enviar esse condenado artefato ao editor. Se te interessa saber o que eu penso desse livro, te direi com minha habitual modéstia que será uma bomba atômica no cenário da literatura latino-americana".

As andanças de Oliveira e a "Maga" provocaram um antes e um depois em gerações de leitores, convertendo Jogo da Amarelinha no maior êxito editorial de Cortázar e em um clássico da literatura em língua espanhola. Em uma entrevista ao jornalista argentino Manuel Antin, o escritor revelou o que tinha pensado originalmente para a obra.

"Quer uma anedota? Jogo da Amarelinha não iria se chamar assim [o nome original do livro é Rayuela]. Se ia chamar Mandala. Até quase perto de terminar o livro, ele seguia sendo chamado por mim assim. Mas em um único golpe compreendi que não posso exigir dos leitores que conheçam o esoterismo budista ou tibetano. E então me dei conta de que Jogo da Amarelinha, título modesto e que qualquer um entende na Argentina, era o mesmo; porque o jogo da amarelinha é uma mandala dessacralizada. Não me arrependo da mudança".

A obra acabou de ganhar uma nova edição da Companhia das Letras, com tradução e revisão de Eric Nepomuceno.