Antes mesmo do que supúnhamos, ainda como uma possibilidade, no artigo anterior, a judicialização do novo Marco Legal do Saneamento Básico foi instalada pelo Partido Democrático Trabalhista (PDT), que moveu no Supremo Tribunal Federal (STF), Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) contra dispositivos da Lei 14.026/2020, sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro.
O PTD argumenta, dentre outros questionamentos, que, ao prever licitação em blocos que incluam municípios de maior e menor interesse econômico, a lei não garante que a iniciativa privada, ou mesmo empresa pública, não cobrará tarifas excessivas para compensar investimentos em áreas desprovidas de qualquer estrutura de saneamento. Isso violaria o princípio da modicidade tarifária, diz o partido, que invoca a Constituição para defender que as tarifas sejam indexadas pelo salário mínimo.
Embora não caiba avançar aqui em juízo de valor, o que o STF fará a seu tempo, a alegação parece se sustentar apenas na presunção de que empresas imporiam, no futuro, tarifas abusivas ‘compensatórias’.
O partido argumenta também que, ao assegurar que as empresas firmem contratos com os municípios, a Lei 14.026/2020 poderá resultar no “confisco” das empresas estaduais de saneamento, que ficariam sem seu patrimônio “único e principal” (sic), que consiste “única e exclusivamente nas concessões já firmadas, tendo como única fonte financeira as tarifas auferidas de seus serviços”.
Porém, em aparente contradição, a própria representação do PDT reconhece a competência jurídico-política dos municípios para gerir os serviços de saneamento básico, ao apontar que a lei violou o princípio federativo, em detrimento dos municípios, conferindo à Agência Nacional de Águas (ANA) poder para regular aspectos da formulação e execução dos contratos.
De todo modo, ao pedir ao STF que declare a inconstitucionalidade dos artigos 3º, 5º, 7º, 11º e 13º da Lei 14.026/2020, em representação que desborda inúmeros outros aspectos do novo Marco Legal do Saneamento Básico, o PDT, como partido com representação no Congresso Nacional, exerce prerrogativas legítimas, contempladas no artigo 103, inciso VII da C.F. de 1988.
Contudo, e embora seja eloquente que o controle de constitucionalidade, invocado pelo partido, constitui fundamento e essência do estado de Direito – não cabendo, portanto, discutir oportunidade ou cabimento da ADI, a não ser no âmbito do próprio STF –, a judicialização do novo Marco Legal do Saneamento Básico, iniciada com essa ação, deve travar o cronômetro em um setor com graves e crônicos déficits.
Como dizíamos no artigo anterior, então apenas considerando hipóteses, a judicialização em torno da Lei 14.026/2020 pode adiar “por meses ou até anos” a instalação de uma nova ‘era’ para o saneamento básico em nosso país, adiando ou mesmo afastando investimentos privados fundamentais para alavancar o setor.
E esse cenário de insegurança jurídica pode estar apenas no começo.
Ainda que os vetos apostos pelo presidente da República – referidos na semana passada – venham a ser derrubados no Congresso, não é plausível supor que a questão se esgote no âmbito das relações Executivo-Legislativo. Nesse caso, seriam as empresas privadas a recorrer ao Judiciário, para garantir os princípios da liberdade de iniciativa e da livre concorrência, conforme sustenta o próprio Executivo ao justificar os vetos.
Some-se a isso a real possibilidade de que o Congresso decida apreciar os vetos presidenciais somente após a decisão do STF sobre a ADI apresentada pelo PDT.
Como Legislativo e Judiciário têm tempos diferentes e ritos próprios, não é possível prever quando o novo Marco Legal do Saneamento Básico, tão importante para um país com 35 milhões de pessoas sem acesso à água tratada e mais de cem milhões que não contam com serviços de coleta de esgoto, começa, de fato, a gerar os primeiros resultados.
Portanto, precisamos de todo empenho e discernimento para que a meta de universalização dos serviços de água e esgoto, fixada para 2033, não venha a ser apenas mais uma das tantas metas reduzidas a simples miragens ao longo de nossa história.
*Iran Coelho das Neves
Presidente do Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso do Sul.
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