Embora vez por outra nos defrontemos, em textos atuais, com referências como “nestas primeiras décadas do século” e equivalentes, a realidade é que já estamos às vésperas de fechar a primeira quinta parte deste século 21, que parece ter começado ontem.
A constatação vem a propósito das vertiginosas transformações que, nas mais diferentes áreas da Ciência e da Pesquisa, parecem atropelar o bom e velho calendário – ou o poético ‘correr do tempo’ – com avanços e disrupturas que colocam a sociedade planetária diante de um paradoxo sem precedentes: nunca a humanidade se viu diante de tantas conquistas científicas, e jamais se defrontou com tamanho risco de exaustão do planeta, quanto hoje.
E há outro e grave paradoxo embutido no primeiro: enquanto as estonteantes conquistas científicas e tecnológicas beneficiam, pelo menos nos primeiros momentos – que podem durar décadas quando falamos de civilização –, somente a porção mais privilegiada dos habitantes da Terra, o processo de esgotamento do planeta, acelerado pela exploração intensiva dos recursos naturais, atinge, de forma mais imediata e mais profunda, as populações mais pobres e vulneráveis.
Seria, obviamente, rematado obscurantismo inculpar o desenvolvimento científico pela ampliação do fosso de desigualdade que separa beneficiários e excluídos do processo de frenética produção que impulsiona.
A Ciência que produz as torrentes de objetos tão sofisticados quanto descartáveis diante do próximo avanço tecnológico – de celulares a automóveis, passando por uma infinidade de “bens de consumo” – é a mesma que sustenta a vanguarda da Medicina, as pesquisas para defesa da vida animal e dos biomas que a abrigam, e que impulsiona a produção de alimentos em escala impensável até pouco tempo.
Porém, enquanto cientistas e pesquisadores se aplicam, em seus laboratórios e campos experimentais, para avançar fronteiras em todas as áreas do Conhecimento, consolidando, nestes primeiros vinte anos do século 21, as bases de uma civilização tecnológica, a humanidade parece estar ainda muito distante de consensos mínimos para estabelecer algo próximo de uma governança global, capaz de gerir a distribuição dos frutos da Ciência, com um mínimo de equanimidade, para todos os povos e regiões do planeta.
Longe de sugerir a mirabolante utopia de um ‘governo planetário’, governança global pressupõe, segundo a ONU (PNUD,2002), a articulação “de um sistema de valores, políticas e instituições que possibilita que as sociedades se organizem para tomar decisões e exerçam ações de ordem política, econômica, sociocultural e ambiental entre Estados, sociedade civil e setor privado.”
Com essa perspectiva, não é difícil avaliar o quão distante estamos de um mínimo compasso entre a Ciência, cujas conquistas convergem, de uma ou de outra forma, para o bem de toda a humanidade (exceto a ciência bélica ou armamentista), e os interesses geopolíticos, econômicos, étnicos e ‘religiosos’ que dividem o planeta.
Nestas primeiras duas décadas deste século, enquanto a Ciência e a tecnologia impulsionam um vertiginoso processo de globalização, centrada quase que exclusivamente na economia, no comércio de bens e serviços cada vez mais sofisticados, o ideal de um compromisso de partilhar valores universais e solidariedade entre os povos é pouco mais que uma utopia.
Nos vinte primeiros anos do século 21 temos testemunhado crescente esvaziamento de tratados e organismos multilaterais, como a Organização Mundial do Comércio, o Acordo de Paris (Acordo do Clima), a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a própria ONU. Ao mesmo tempo, é crescente o número de governos autoritários, que estimulam nacionalismos e, não raro, perseguições a etnias minoritárias dentro de seus próprios países.
Mesmo em algumas nações centrais, com peso decisivo para os interesses da sociedade planetária, inspirações nacionalistas exacerbadas movimentam governantes no sentido de enfraquecer o multilateralismo, único caminho para a busca de formas solidárias de convivência entre os povos da Terra.
Enquanto isso, diante da mais dura provação a que a sociedade global foi – e segue – submetida neste século, a Ciência, felizmente, dá provas de que, muito além das dissenções geopolíticas, disputas econômicas ou corridas por dominação tecnológica, posta-se na vanguarda de uma solidariedade global que os líderes políticos ainda não foram capazes de esboçar:
A forma como pesquisadores e cientistas de todo o mundo, ligados a universidades, farmacêuticas e centros de investigação científica públicos e privados, foram capazes de se articular em equipes transnacionais que produziram, em tempo recorde, diversas vacinas que se mostram promissoras para combater a pandemia de Covid-19, expressa, de modo contundente, que ainda há esperança de que podemos avançar, mesmo que lentamente, na construção de uma sociedade global mais solidária.
Resta torcer para que as lideranças políticas mundiais sejam capazes de edificar, sobre o magnífico acervo de interação planetária que a Ciência constrói hoje em favor da humanidade, os alicerces que nos permitam sonhar com uma sociedade globalizada, no sentido de que todos possamos, de alguma forma, usufruir de um planeta que seja, de fato, a casa de todos nós.
Este é, sem dúvida, o grande desafio civilizatório deste ainda jovem século 21.
*Iran Coelho das Neves
Presidente do Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso do Sul.
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