Talvez em nenhum outro momento de nossa história recente a ponderação e o bom senso tenham sido tão essenciais quanto agora, quando o enfrentamento da pandemia, que já ceifou mais de duzentas mil vidas e infectou mais de 8,6 milhões de brasileiros, deveria fortalecer nossos laços de coesão social, mas, paradoxalmente, os esgarça, estimulando radicalismos políticos e polarizações ideológicas extremamente preocupantes.
Dito de forma direta, constitui arrematada e ruinosa insensatez ignorar que todos nós, seja lá a que espectro político pertençamos, temos um inimigo único e mortífero a ser combatido: a pandemia de Covid-19. Lamentavelmente, boa parte do vigor social e do senso de responsabilidade humana, fundamentais para unir a nação em momento de tamanho desafio comum, é exaurida em confrontações ideológicas exacerbadas, em revanchismos e rejeições mútuas.
Pode-se alegar, e com razão, que apesar de toda a desditosa ‘caça às bruxas’ – que infelizmente não se restringe às redes sociais, mas ocupam cada vez mais o espaço político e institucional –, a guerra à pandemia, no campo da saúde, que é o único que deveria interessar, tem sido travada com vitórias e derrotas, como em qualquer outro país. E neste momento já temos o prenúncio alentador de uma campanha de vacinação, ainda que sob risco de ser procrastinada por injunções externas.
Porém, se da perspectiva humana, ou seja, da vida como valor primordial a ser defendido e preservado, a tão almejada vitória sobre a pandemia consubstancia o nosso maior e mais imediato desejo, do ponto de vista social uma indagação deve angustiar todos os brasileiros neste momento: enquanto nação, que Brasil emergirá no pós-pandemia?
Se, evidentemente, não pode ser apontada como causa do atual processo de corrosão política e de fragmentação social, cujo início lhe é anterior, a pandemia teve como efeito deletério o acirramento de antagonismos políticos e ideológicos.
Ao conferir, artificiosamente, às severas medidas sanitárias de restrição às atividades econômicas uma ‘natureza política’ que nada tinha a ver com sua essência de prevenção ao contágio, agentes públicos importantes inflamaram um debate que, nas redes sociais, na mídia convencional – e mesmo nas instâncias políticas que deveriam preservar algum espaço para um diálogo minimamente civilizado – descambou para a mútua desqualificação. Que inviabiliza a interlocução e transforma discordâncias em repulsas insanáveis.
Ainda em julho de 2019, em artigo intitulado ‘O Perigo do Radicalismo Ideológico’, ao citar pesquisa do Instituto Ipsos apontando que 32% dos brasileiros achavam não valer a pena dialogar com quem tivesse opiniões políticas diferentes das suas, advertíamos:
“Os radicalismos excludentes à direita e à esquerda do espectro político-ideológico, insuflados por pautas calcadas em alegados ‘valores morais’ ou de ‘costumes’, configuram uma beligerância insensata nas redes sociais, onde o que pensa diferente é o inimigo a ser destruído, a começar pelo aniquilamento de sua reputação pessoal.”
Desde então, a polarização só fez recrudescer. E a pandemia de covid-19, cujas dimensões dramáticas e funestas consequências deveriam mobilizar o senso de coesão social, e inspirar valores individuais como a solidariedade e a empatia, só em parte cumpriu esse desiderato.
Enquanto dezenas de milhares de profissionais da saúde se entregam, até limite da exaustão, ao combate à pandemia, muitos sendo contaminados e outros tantos sacrificando a própria vida, viceja uma ‘cepa’ tão improvável quanto perniciosa do novo coronavírus: uma variante ‘ideológica’ que, astutamente inoculada, corrompe o diálogo e trunca o livre debate de ideias, configurando uma grave ameaça de esgarçamento social
É urgente que o Brasil, pela voz de suas lideranças mais lúcidas e proeminentes em diferentes instâncias, se empenhe, com diligência e objetividade, por um chamamento à sensatez e à ponderação.
Sem a restauração de condições mínimas para um diálogo construtivo, baseado no respeito mútuo, o cenário social e político pós-pandemia estará perigosamente deteriorado.
*Iran Coelho das Neves
Presidente do Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso do Sul.
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