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Opinião Domingo, 29 de Dezembro de 2024, 16:26 - A | A

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Opinião

O Mistério de Irma Vap no planejamento patrimonial sucessório

Por Laura Brito*

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No dia seguinte ao Natal, o Brasil de despediu de Ney Latorraca, um ator brilhante e consagrado no teatro, no cinema e na televisão. Latorraca faleceu com 80 anos e mais de 60 de carreira.

Ao abrir os portais dos maiores jornais do Brasil, algo muito peculiar me chamou atenção nos obituários desse ícone da atuação: todos mencionavam a preocupação do ator com a organização financeira e as decisões que havia tomado no campo do planejamento sucessório.

A primeira chamada era: “Ney Latorraca doa seus quatro apartamentos em áreas ricas do Rio e de SP”. Em seguida, a informação: “Retiro dos Artistas e Grupo de Apoio às Crianças com AIDS, de Santos, serão beneficiados; 'Está no meu testamento, fiz questão'”. Fiquei um pouco atordoada: Ney faleceu ou resolveu anunciar no jornal a realização de doações? Buscando mais informações, me deparei com o anúncio de mais um jornal de grande circulação: “O ator e diretor Ney Latorraca, que morreu nesta quinta (26), aos 80 anos, vítima de sepse pulmonar em decorrência de tratamento contra um câncer, deixou em testamento a doação de seus quatro apartamentos para instituições”.

A impressão que tive era de estar assistindo a uma montagem jurídico-sucessória da peça O Mistério de Irma Vap, que ficou onze anos em cartaz e alçou a carreira e o patrimônio de Latorraca ao estrelato.

Na peça, escrita por Charles Ludlam e estreada no início da década de 80 nos Estados Unidos, comédia e terror se misturam em um jogo teatral que lembra uma sala de espelhos. Dois atores interpretam todos os papeis em uma troca frenética de figurino e trejeitos.

Nas notícias, doação e testamento se confundem completamente como se fossem a mesma coisa. Em nada isso me preocuparia se essa confusão não se repetisse todos os dias entre pessoas que pretendem fazer um planejamento sucessório e não buscam a assessoria de um advogado especializado.

Por isso, em homenagem a Ney Latorraca, que, ao que tudo indica, era muito organizado e muito bem assistido, cuja memória não merece ficar atrelada a esse troca-troca jurídico, precisamos esclarecer, de uma vez por todas, que doação e testamento são coisas que não se confundem.

Verdade seja dita, ambos são instrumentos clássicos do planejamento patrimonial sucessório. Ou seja, são formas de exercício da autonomia da vontade para, dentro dos limites legais, alterar em alguma medida a ordem de vocação hereditária e/ou o modo de partilha. Explico. Esses instrumentos podem ser usados para beneficiar uma pessoa que não é herdeira legal, para aumentar ou diminuir a participação de um herdeiro ou para determinar qual bem deve ficar para cada um.

A doação, observem, é um instrumento de transmissão do patrimônio em vida. Com ela, o proprietário de um bem transmite gratuitamente esse ativo para outra pessoa, perdendo o domínio sobre ele. Ou seja, uma coisa que era de um dono passa a ser de outro, de maneira que esse bem não estará mais na esfera patrimonial do doador. Acabou, está acabado. Feita a doação, salvo situações extremas, não há mais volta. Não há arrependimento porque houve mudança de titularidade do bem.

O testamento, por outro lado, é uma disposição de última vontade que só terá eficácia no falecimento do testador. Até lá, os bens que são objeto do testamento não são transmitidos para a titularidade dos beneficiários apontados no documento. Enquanto estiver vivo e capaz, o testador pode mudar o testamento, pode vender seus bens ou, até mesmo doar para outras pessoas. O testamento válido e hígido surtirá os seus efeitos no patrimônio que existir no momento da morte.

Ambos os instrumentos colocam o controle sobre o nosso patrimônio entre a luz e as sombras do palco. A doação garante que a transmissão seja completa com o planejador ainda vivo, tendo mais gerência sobre ela, mas perdendo a propriedade, em si, desde já. O testamento, ao contrário, permite que a plena propriedade continue com o testador e mantém com ele a possibilidade de mudar a vontade quantas vezes quiser, enquanto capaz. Mas o cumprimento de sua decisão acontecerá quando tiver partido, sem condições de ver, ao vivo e em cores, a realização de sua última vontade.

A confusão entre os dois institutos é grave e faz com que pessoas realizem doações acreditando que continuariam donas do bem doado até a sua morte. Ou seja, que seria apenas uma promessa, o que não é a realidade. Da mesma forma, faz com que planejadores façam um testamento e entendam que nunca mais podem fazer nada em relação a um bem que foi colocado em legado.

Tem papel que seja melhor ou pior? Creio que não. O que não se pode é enganar o público. Não, ao menos, no campo do Direito. No teatro, aí, sim, confundir para divertir é uma arte.


*Laura Brito
Advogada especialista em Direito de Família e das Sucessões, possui doutorado e mestrado pela USP e atua como professora em cursos de Pós-Graduação, além de ser palestrante, pesquisadora e autora de livros e artigos na área.

 

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