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Reportagem Especial Terça-feira, 22 de Setembro de 2009, 09:02 - A | A

Terça-feira, 22 de Setembro de 2009, 09h:02 - A | A

Denúncia: Sonho bom vira pesadelo em meio a comércio ilegal de casas feito por supostos grileiros

Redação Capital News (www.capitalnews.com.br)

A comercialização ilegal de casas construídas pela Ehma (Empresa Municipal de Habitação) na Capital, seja por recursos próprios da Prefeitura ou por convênio com a CEF (Caixa Econômica Federal), pode tornar a vida de usuários um tormento e o sonho bom da moradia vira pesadelo.

Inúmeras denúncias das transações irregulares envolvendo pessoas de boa fé ou mal intencionadas chegam a todo tempo na empresa municipal ou no banco federal. Não há saída, caso seja constatado o ato ilícito, quem permanece no estabelecimento é despejado.

O número de casos suspeitos e confirmados de irregularidades não são informados plenamente pelos órgãos competentes, todavia, CEF e Prefeitura promovem regularmente fiscalizações.

A equipe de reportagem do Capital News apurou o caso e teve acesso exclusivo a documentos e depoimentos de pessoas que foram enganadas. Ainda ouvimos um homem que seria um suposto “grileiro” de casas [como também são conhecidos no meio imobiliário os 'corretores' ilegais de residências]. Sem saber que estava sendo gravado, ele explica o suposto esquema. Descobrimos irregularidades em dois locais, nos residenciais Silvestre e Vida Nova II, ambos na região norte da cidade, próximos ao bairro Nova Lima.

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Bairro Vida Nova II teria casas vendidas por suposto "grileiro", dizem fontes
Foto: Deurico/Capital News

Dois moradores do Vida Nova II permitiram que contássemos suas histórias aqui, mas, com a condição de que seus nomes fossem mantidos em sigilo.

Muitas das pessoas fizeram negócios pensando estar cumprindo a lei, porém, por falta de informação [às vezes também de quem vendeu], correm o risco de voltarem a dormir em um teto que não é seu, ou, em casos mais graves, ficar sem abrigo algum.

O Capital News também ouviu a Superintendência Regional da Caixa Econômica Federal em Mato Grosso do Sul para explicar as relações legais a serem tomadas em todos os casos envolvendo a instituição para não ter problemas.

“Gastei doze mil reais”

Esse foi o valor que V. pagou pela casa que acreditava ser sua. Ele vive com a mulher e três filhos pequenos no bairro Vida Nova II.

A residência onde ele mora não foi quitada. Ela foi adquirida legalmente por uma mulher em setembro de 2003. Em outubro de 2006, essa mulher revendeu a casa a outra por R$ 6 mil e a obrigação da “nova moradora” continuar pagando os valores previstos pela Emha – ainda no nome da “primeira proprietária”. O valor a ser pago é de R$ 41,50.

Ainda em 2006, V. acreditou ter comprado a casa por R$ 12 mil, de quem seria, para ele, a “segunda dona”. Nem com o imóvel estando no nome da primeira e única dona ele diz ter desconfiado do negócio irregular.

Assim como na primeira transação, desta vez, o procedimento foi registrado em cartório. Os documentos estão lá, com cláusulas, com direitos, deveres e assinaturas. Porém, são os famosos contratos de gaveta.

O contrato de gaveta é comum no mercado imobiliário, segundo nossas fontes. Trata-se de um documento não oficial. Ele vale tão somente para as pessoas envolvidas. Ou seja, por mais que elas tenham pensado em um respaldo legal, essa papelada toda é irrisória porque não vai ser aceita por qualquer órgão. No caso das denúncias apuradas pelo Capital News, estes documentos valem somente entre o vendedor e o comprador do imóvel, mas não para a Ehma ou CEF, que são realmente proprietárias das unidades habitacionais.

Por essa fragilidade, o contrato de gaveta aponta um elevado risco para todas as partes envolvidas.

O que acontece na imensa maioria das vezes – e em vários dos casos pesquisados por nossa equipe de reportagem – o dono de um imóvel legalmente financiado resolve vender sua casa para outro, mas não faz isso de um jeito formal porque o comprador quer uma residência mais barata ou não pode arcar com um financiamento nas condições normais de mercado.

Sendo assim, o “novo dono” continua a pagar o financiamento como se fosse o antigo proprietário. Ou seja, ele não passa nada para seu nome, mas paga como se acreditasse que aquele imóvel de fato é dele, com a ideia de que, assim que termine de pagar tenha condições então de tomar posse do imóvel oficialmente. Mas, a ideia é equivocada.

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Morador mostra contrato de gaveta em que assinou; ele continua pagando prestações em nome da "primeira dona" do imóvel
Foto: Deurico/Capital News

No caso do nosso entrevistado, é pior. V. diz que é vítima de um “grileiro”. Este suposto “grileiro” teria conseguido passar a casa onde mora para seu nome também e agora o ameaça de despejo.

“Eu pensei que era só passar ‘pro’ meu nome se pagasse 50%. A Emha que falou. E dizem que não pode vender depois. Então, como que pode passar para o nome depois de pagar 50%. ‘Tá’ errado, não ‘tá’?”, diz.

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Morador mostra cartão com as prestações pagas em dia, mas casa não está em seu nome
Foto: Deurico/Capital News

“Mudei ‘pra cá’, tive que viajar. Trinta dias depois, o que que aconteceu? Me roubaram a casa, tiraram a telha. Minha irmã cedeu uma pecinha para mim ‘pra’ eu ficar com a minha mulher e os filhos até reconstruir o telhado. O assalto foi em setembro de 2007, não, em outubro de 2008.”

“Nesse meio tempo, em fevereiro deste ano. Minha casa ‘tava’ sem telha ainda. Mesmo assim, continuava pagando ela em dia [as prestações para Ehma, no nome da primeira dona da casa e única, perante a empresa de habitação]. Aí, descobri que tem um cara que ele ‘grila’ terra, ‘grila’ casa.”

“Esse cara veio aqui um dia e tirou foto da casa. Foi lá que nem eu consegui passar ‘pro’ meu nome e ele conseguiu. A mulher lá na Ehma falou que sorteou ele. Mas logo ele? Incrível, né?”, diz V.

V. lamenta e está desesperado porque se desfez de poucos bens e de uma pequena poupança, além de empréstimos para conseguir os R$ 10 mil [na documentação está R$ 12 mil, ele retifica depois]. “Foi um dinheiro investido ‘pra’ morar ali eu e minhas crias.”

V. além de pagar mensalmente pela casa, ainda arca com as despesas de água e luz. Ele sofre porque diz ter acreditado no contrato de gaveta. “Tenho os valores todos pagos e para o meu nome eu não consegui passar e em fevereiro ele conseguiu [dizendo sobre o “grileiro”]. Coloquei água aqui e paguei”, comenta.

Com toda documentação nas mãos ele argumenta. “Aí passou para mim [a ‘segunda dona’]. ‘Tá’ tudo aqui as cláusulas. Então, por que o cartório carimbou e aceitou aqui?”

Acontece é que o cartório [por boa ou má fé] registrou somente a firma das assinaturas, ou seja, aceitou que aquelas duas pessoas concordavam com aquilo, mas não que necessariamente aquilo com que elas concordavam era legal, por mais absurdo que isso aparente ser.

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Morador seria suposto "grileiro", espécie de corretor ilegal, segundo vizinhança
Foto: Deurico/Capital News

No muro: “Vende-se este imóvel”

Em um bairro com casas financiadas, um homem aluga um bar construído onde deveria ser uma residência. Na parede do bar e no muro do cômodo ainda usado como residência, a frase: “Vende-se este imóvel.”

As casas que serão comercializadas são da Emha ou da Caixa. Ali, mora um suposto “grileiro”, segundo nossas fontes. Ele sobreviveria da comercialização ilegal das residências. É como se fosse um corretor de imóveis; venderia para alguém e receberia comissão.

“Ele vende sim. Mas, não vende as dele, lógico. Pega as dos outros ‘pra’ vender. Ou então terceiriza”, diz R., que aluga o bar.

A equipe de reportagem do Capital News, por duas vezes, ligou para o suposto “grileiro”. Sem saber que tratava-se de uma investigação jornalística, ele contou como funciona todo o esquema irregular.

Na primeira, falou que possuía casas em diversas localidades na região e que “dava um jeito” para passar a residência a nosso repórter – que fingiu ser uma pessoa interessada em adquirir uma casa.

Ele explica que prefere “conversar sempre pessoalmente”. Disse que não possui pessoas ligadas à Emha, mas tem como passar os imóveis para o nome de qualquer interessado, citando contratos em cartório. “É tudo legal.”

Ligamos uma segunda vez. Desconfiado, o suposto “grileiro” se exalta. Mas, em determinado momento, afirma: “Por telefone não tem fila”; que seria sobre a transação furando a lista da Ehma ou Caixa.

Leia trechos da conversa [os nomes foram cortados]

“Capital News: Alô!

Suposto grileiro, segundo nossas fontes: Fala!

Capital News: Então. Queria saber se é você que está vendendo umas casas. Eu conversei com o R.. Você que vende umas casas aí no Nova Bahia, no vida Nova? Queria saber quanto você está pedindo.


Suposto grileiro: Pode falar.

Capital News: Queria saber se você está vendendo?

Suposto grileiro: Rapaz já falei para você, vem conversar pessoalmente comigo. Você tá pensando que eu sou otário?

Capital News: Não por que? Não entendi.

Suposto grileiro: Não. Vem falar. Você tá com medo de alguma coisa? 'Tá' pensando que eu sou otário?

Capital News: Não cara. É que eu fico com certo receio de perder a casa.

Suposto grileiro: Vem aqui, a gente conversa pessoalmente, eu te mostro a documentação. A gente vai na Emha. Eu e você junto tá.

Capital News: Mas não tem problema nenhum não?

Suposto grileiro: Claro que não cara. Não vem com essa ladainha não.

Suposto grileiro: Não tem nada, você não quer comprar porra nenhuma.

Capital News: Não.. é o seguinte.. é porque a gente ouve falar umas conversas de que tem problema de perder a casa porque não consegue transferir pro nome.

Suposto grileiro: Vem aqui pessoalmente. Eu não sei se você tem carro, tem moto, ou de ônibus. Vamo lá. Se não der certo, pronto, não faz negócio cara.

Capital News: Mas tem como passar pro nome, certinho?

Suposto grileiro: Tem. Tem como passar pro seu nome. A luz, a água, a casa, a prestação. Mas, vamo lá.

Capital News: Tá. Mas, a casa tem como passar?

Suposto grileiro: Tem como passar.

Capital News: Mas, vai passar pro meu nome?

Suposto grileiro: Pro seu nome. Se não passar, você não precisa me dar nenhum centavo, pronto.

Capital News: Tá então. Mas, como que eu faria?

Suposto grileiro: Ué, vem aqui, a gente vai lá na Emha, aí a gente vê o que que tem de luz lá, de água, entendeu?

Suposto grileiro: Eu não vou te atender mais.

Capital News: Tá, mas, só pra eu saber, você tem outras casas também?

Suposto grileiro: Tem. Tem.

Capital News: Vou falar pra você, eu peguei um dinheirinho. Troquei umas coisas, acabei vendendo outras e consegui uns dez mil.

Suposto grileiro: Dez mil tu não compra nem lote.

Capital News: Não?

Suposto grileiro: Não.

Capital News: Mas, conversando com um pessoal aí, eu consiga mais um pouquinho. Por isso que eu queria saber de você, até para eu não perder tempo também.

Capital News: Mas só pra eu saber – porque foi duro juntar esse dinheirinho – e a gente fica meio assustado, não querendo cair na conversa dos outros.


Suposto grileiro: Por dez mil você não compra aqui não meu amigo. Só nas casas lá debaixo, ta bom. Beleza.

Capital News: Mas, por quanto que eu conseguiria comprar aí, então?

Suposto grileiro: Aqui tem casa de dez mil, de doze, de trinta. Qualquer tipo. Por dez, só lá pra baixo.

Capital News: Porque eu não queria ali perto do Vida Nova. Porque eu já dei uma olhadinha, não tem asfalto nuns lugares. Eu queria saber se tinha mais pro Nova Bahia, pra aquele lado...

Suposto grileiro: Faz o seguinte... vem aqui, a gente conversa pessoalmente. Eu não vou atender mais seu telefone.

Capital News: Então, já que você não vai atender mais, é garantido é possível que eu consiga passar pro meu nome mesmo não estando quitada?

Suposto grileiro: Vamo fazer o seguinte? Voce vai lá na Emha e olha.

Capital News: Não, mas eu não queria porque tem fila lá.

Suposto grileiro: Não tem fila não.

Capital News: Oi?

Suposto grileiro: Por telefone não tem fila não.

Capital News: Não tem fila?

Suposto grileiro: Não. Vai lá se informa. Aliás. Eu faço questão de não vender mais pra você. Não me enche o saco. Tchau. Tchau. Vai embora.”

 


Cuidados


Embora a situação informada seja sobre uma casa da Ehma e não da CEF, o Capital News teve acesso a fontes que disseram sofrer o mesmo em empreendimentos que levam o nome do banco federal.

Nossa equipe procurou o superintendente da CEF em Mato Grosso do Sul, Paulo Antunes. Sobre as documentações que conseguimos, ele diz: “Esse carimbo aqui reconhece que a assinatura é verdadeira. Só a assinatura, não reconhece que todo o processo é verdadeiro.”

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Superintendência da CEF em MS, Paulo Antunes, explica as irregularidades e como não cair em golpes da casa própria
Foto: Deurico/Capital News

Todos nossos exemplos apontados referem-se a arrendamentos. Paulo Antunes explica: “Como é arrendamento, você não é proprietário. E se você não é proprietário, você não pode vender. Você vai ter que seguir as condições do arrendamento, ou seja, pagar em dia. Se você mora de aluguel e fica seis meses sem pagar, o que ocorre? Você é despejado. Da mesma forma no FAR [Fundo de Arrendamento Residencial].”

“Logicamente que nem sempre é simples para você despejar uma família. Mas isso é totalmente possível. Essa casa não te pertence, então, não pode vendê-la”, continua.

Antunes faz um apelo. “Quero pedir para que as pessoas não vendam essas casas do arrendamento residencial porque legalmente não podem ser vendidas. E nem comprem. Porque a Caixa está com fiscalização permanente nos bairros e nos residenciais. Muitas pessoas estão enfrentando dificuldades, não é nem Caixa, é na Justiça , por conta da retomada destes imóveis. E as pessoas que, no caso do financiamento, que podem ser transacionadas livremente, se atentem que é desde que sejam feitas no órgão competente, que é o cartório e a Prefeitura. Mas com a escritura e não com o contrato somente.”

Veja o Contrato de Gaveta 

 

Por: Marcelo Eduardo – (www.capitalnews.com.br)

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