O entrelaçamento entre desejo dos pais e relações de gênero, a que alude o título deste artigo, pode ser visto quando o casal decide ter filhos. Ainda é muito comum que a preferência seja por um filho homem quando se trata da primeira gravidez, reservada a segunda gravidez para a filha mulher, que viria, neste caso, para formar um casal de filhos, correspondendo a uma fantasia muito comum entre pais. Essa é uma herança da qual a família pequeno-burguesa contemporânea não tem conseguido se desfazer. No modelo aristocrático, em que casamento era negócio, e não sentimento, o que importava era o primeiro filho, se fosse homem, para ser o herdeiro dos negócios da família. Hoje, mesmo quando as famílias se estruturam por laços afetivos, esse modelo de escolha de filiação permanece. Não é por acaso que a historiadora norte-americana Joan Scott já dizia que o gênero está no princípio e é estruturante dos modos de organização das relações humanas e, portanto, das relações de poder.
Essa ideia é ilustrada pelo conto Você me queria? que faz parte do livro À beira do Araguaia. Eve, a primogênita do casal Ana e Pedro, a partir de um acontecimento escolar, aparentemente banal, é tomada pela dúvida quanto a se seus pais realmente a desejaram enquanto ainda estavam grávidos ou se, na verdade, teriam desejado um menino. Ela interroga primeiramente a mãe, depois a avó paterna e, por fim, o próprio pai. O modo como a narrativa trata o assunto indica que a perplexidade de Eve interroga a própria sociedade contemporânea, deixando à mostra o núcleo patriarcal que estrutura e modula o nosso desejo que, pela sua natureza, é inconsciente bem como ainda ambivalente quando se trata do lugar da mulher neste nosso século XXI. Nesse sentido, faz bem em sempre lembrar do que dizia o psicanalista francês Jacques Lacan: o inconsciente é a política.
“Anoitecia cá dentro, não sabia bem ao certo onde podia ser – no tórax, descendo pelo estômago, pela barriga. Temerosa, como estava, chegou a duvidar se perguntaria mesmo ao pai, e correr o risco de saber o que sabia para sempre, sem o socorro da dúvida. Sentiu pena da noite que, como ela, é sempre depois. Celebrada de poesia, cheia de encantos, graciosa de sempre encantar, mas sem dúvida a segunda.” (À beira do Araguaia, p. 79).
Um modo, portanto, de abordarmos a questão da igualdade entre os sexos é prestar atenção a como essa trama se tece no campo das fantasias parentais, onde uma verdadeira microfísica do poder se desenrola, como diria Michel Foucault. A pergunta é: o que você, pai/mãe deseja: menina ou menino? Como explica o psiquiatra e psicanalista suíço Francois Ansermet, em seu livro "A fabricação das crianças - uma vertigem tecnológica", o desejo dos pais cria um lugar para a criança no mundo. Se o desejo de um casal é por um filho homem como primogênito, que lugar restaria para a menina que vem nessa posição? Seria um acidente, um erro, um equívoco? Quando a expectativa dos pais se confirma, a menina viria como um suplemento, um a mais, fazendo par com o menino, para formar o casal de filhos. Se assim for, a mulher somente adquire seu valor em relação ao homem, significando sempre como menos valia, como complemento. Por isso, e para finalizar, é importante que cada um, cada uma, se pergunte: qual o lugar no meu desejo para minha filha?
*Francisco Neto Pereira Pinto
Escritor e psicanalista. Doutor em Letras. É Professor Permanente no Programa de Mestrado e Doutorado em Linguística e Literatura da Universidade Federal do Norte do Tocantins. Siga o autor pelo Instagram: @francisconetopereirapinto
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