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Reportagem Especial Sábado, 08 de Agosto de 2009, 08:24 - A | A

Sábado, 08 de Agosto de 2009, 08h:24 - A | A

\"Aqui\"

Marcelo Eduardo - Redação Capital News (www.capitalnews.com.br)

“Aqui”.

É por volta das 11h30. Três conversam. Agora, chegam outros cinco. Começa a roda de bate-papo. Aqui, é o “Bancão”.

“Bancão” é como os frequentadores chamam o antigo Albergue da Capital, localizado na esquina entre a avenida Afonso Pena e a rua Visconde de Taunay, no bairro Amambaí (próximo ao Centro). O apelido veio por conta da “poltrona de cimento” que atendia os antigos moradores. “Aqui”, não tem teto, não tem paredes, não há segurança, não há conforto, não existe silêncio.

O local virou ponto de encontro entre aqueles que esperam por melhores condições de vida e, por enquanto, tem aquela calçada como morada. “Aqui” é a resposta de Alan Diego Moura e Silva, 22 anos, um artista plástico vindo de São Paulo (SP), sobre sua nova casa em Campo Grande. A afirmação, aliás, não vem vocalmente, mas através de um gesto. Indagado, ele aponta para a calçada em frente ao antigo albergue, onde está sentado.

Os “moradores” contam que enfrentam discriminação e descaso da sociedade e do Poder Público. Cada um, a seu modo, relata um pouco de sua história e opinião sobre o abandono do lugar que um dia os abrigou.

“Até o terceiro ano...”

Alacedir [pediu para que o sobrenome não fosse veiculado], 29 anos, vem de Salvador (BA). Está em Campo Grande desde 2005. Veio querendo achar emprego, “trabalho digno”. Divorciado, pai de um casal (uma menina de 13 anos e um rapaz de 16 anos). “É, comecei muito cedo mesmo... com 13 anos”, diz, a respeito da época em que foi pai pela primeira vez. A ex-mulher se casou outra vez e vive com os filhos em Cuiabá (MT). "Graças a Deus que eles estão com ela", diz.

Ele diz para todo mundo – e ninguém nega – que é um ex-acadêmico de Direito. Ele teria conseguido bolsa na USP (Universidade de São Paulo), feito até o terceiro ano, mas, sem explicar o motivo, teria se desiludido e terminado. “Em Salvador, havia uma espécie de cursinho. Havia bolsa para quem fosse destaque. E, certa vez, eu, graças a Deus, fui um dos jovens contemplados com aquela bolsa.”

O vício teria contribuído para ele ir para a rua. “Sou viciado mesmo. Em pasta base”. Alacedir ainda teria sofrido um acidente de carro. Ele diz consumir “uma cabeça” [porção] de pasta base por dia. “Dura uns dez minutos. Para mim, que sou um ‘dragão’, dura uns dez minutos.” Ele evita comentar sobre o local onde adquire a droga a R$ 5,00 a cabeça, temendo represálias.

Alacedir conta sobre sua passagem pela Cidade Morena. Ele gostaria de já ter voltado para Salvador. “Desde 2005 vim para cá para o Mato Grosso [do Sul]. Desde 2005 vivo na rua”, reclama, principalmente quanto ao Poder Público.

Após o fechamento do albergue, o Cetremi (Centro de Triagem e Encaminhamento do Migrante) é o local que, segundo a Prefeitura, oferece assistência provisória através de hospedagem, alimentação, higienização, orientação, encaminhamento à Rede Socioassistencial, e o desenvolvimento de oficinas de ressocialização.

Alacedir diz que pouco recebe da Prefeitura e do governo do Estado. Para ele, o auxílio na área de saúde é a principal necessidade dos moradores de rua.

“O Cetremi não tem assistência social nenhuma. A única coisa é criticar o morador de rua. Quando é época de festa, eles tiram todo mundo da rua, vem guarda municipal, vem Polícia Militar, tira todo mundo e leva ‘pra’ lá e depois eles jogam todo mundo na rua de novo.”

“Já tentei marcar audiência com o prefeito, mas, o guarda municipal vê a gente lá [na frente da Prefeitura] e já não tem conversa. Ninguém ouve a gente. O que nós precisamos no momento é de clínica, bastante clínica. Tem gente que ‘tá’ precisando ser internado para fazer desintoxicação de droga, de álcool”, solicita Alacedir.

“Ninguém quer ficar na rua, não”

Baixinho, como Cleomar Espinosa Ramos, 38, é conhecido pelos amigos, é claro: “Você acha que a gente quer estar aqui, assim, nessa situação?”

Mecânico e motorista, há vários anos Baixinho mora na rua e, de vez em quando, no Cetremi.

“Vim ‘pra’ rua por causa ‘duma madama’ loira de olhos azuis. Eu dei tudo ‘pra’ ela. E ela nada por mim. Todo mundo que ‘tá’ na rua tem uma história. Ninguém ‘tá’ aqui porque quer”, diz.

Baixinho faz um pedido a todos que passam por ali e, segundo eles, fingem que nem os vê. “Compreensão. Compreensão das pessoas. Todo mundo tem uma razão ‘pra tá’ aqui.”

“Vivo num mundo de ilusão”

Há duas semanas, Alan Diego Moura e Silva está em Campo Grande. Ele veio com a mulher em busca de “sonho” de ver sua arte exposta em algum local em alguma cidade. Achou que este local poderia ser “o Mato Grosso [do Sul]” porque disseram para ele “que aqui tinha muito trabalho, muito espaço”. “Não tem nada. Queria ter voltado. Não tenho nada e até minhas tintas para eu pintar a Polícia levou porque disse que eu não podia fazer isso [pintar] ali no lanchódromo [como ele chama o Camelódromo].” Alan não pode mostrar sua arte e, portanto, sem comercializá-la, deve ficar morando “aqui”, na calçada da esquina entre a avenida Afonso Pena e a rua Visconde de Taunay.

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A mulher, veio com o artista plástico de SP; um colega tira uma soneca ao lado
Foto: Arte Deurico/Capital News

Alan está quieto sentado sem almoçar. “Vivo num mundo de ilusão ‘véio’. Porque, se eu viver no da realidade, me desespero, faço coisa que não devo.”

“Eu não fumo, não bebo. Tenho mulher. Quero trabalhar. Mostrar minha arte. Só isso. Aqui, assim como São Paulo – pensei que aqui era diferente (interrompe) –, não há valor para a arte, para a cultura”, finaliza Alan.

“Solidariedade não. Amizade, mesmo”

Os moradores na rua vivem de auxílio das pessoas que se solidarizam. Todos os sábados há uma entrega de sopão. Mas, nos demais dias, a ajuda vem dos “vizinhos do Bancão”.

O fotógrafo Guilherme Machado é uma dessas pessoas que ajudam. “Moro há um ano. Vi muitas coisas. “Eu ajudo com comida. A gente conversa. Já vi a Polícia fazer paredão aqui [colocá-los de frente para a parede do antigo albergue para revistas]. As pessoas olham e passam. Vi muita coisa.”

Guilherme fala da relação com eles. “A gente já pegou algo como uma amizade entre. E ainda ‘tá’ faltando o Negão. ‘Ow’, cadê o Negão, Baixinho?”

“Põe o endereço daqui, por favor”

Sem saber ler, Paulo Fernandes Pessoa, 32 anos, dá umas garfadas na comida trazida pelo fotógrafo Guilherme e entrega uma carta ao repórter. “Põe o endereço daqui, por favor. Colocaram errado ‘pra’ mim.”

O servente de pedreiro vindo de Três Lagoas só quer mandar notícias para a mulher e dois filhos que deixou na roça no município do leste do Estado. A ajuda era para copiar o endereço da sua casa em Três Lagoas, no envelope. “Devem estar preocupados. Faz um tempo que eu não dou notícias.”

Paulo não sabe ler nem escrever. “Para arrumar emprego é que é difícil. Eles pedem quarta série. Eu nem fui na escola. Fui criado na roça. Desde pequeno.”

Oops!

O antigo albergue foi retomado pela Prefeitura em setembro de 2008 da Associação das Abnegadas de Mato Grosso, que devia R$ 141.480,63 a título de IPTU (Imposto Predial e Territorial Urbano), de acordo com extrato de débito emitido pela Secretaria Municipal de Receita, em 30 de março de 2007.

Em novembro de 2008, a Comissão de Saúde da Câmara Municipal, presidida na época pelo vereador Paulo Siufi, discutiu a possível instalação de uma UPA Infantil (Unidade de Pronto Atendimento Infantil de Urgência) no local.

Existem muitas outras histórias. Tão ricas e sofridas quanto estas. Oops! Este jornalista esqueceu de algo básico. Não disse o dia em que a cena se passa. Pois bem... isso “aqui” tanto faz... já que este é o cotidiano deles. A imagem se repete, eles mesmos afirmam. Até quando? Até quando eles vão continuar “aqui”?

Observação: Quando da apuração desta reportagem, o Capital News entrou em contato com o Cetremi. A direção informou que somente a assessoria de comunicação da Prefeitura seria responsável pela veiculação de dados sobre o local.

Procuramos por ao menos quatro vezes a assessoria durante três dias. Deixamos recados e, até a finalização deste texto, não houve respostas.

O vereador Paulo Siufi, que discutiu a ideia de transformar o local, ano passado, estava de viagem ao Canadá e não conseguimos contato.

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Prefeitura ainda não respondeu o que será feito do antigo albergue, hoje abandonado
Foto: Arte Capital News

 

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