A catástrofe ambiental anunciada na costa marítima brasileira, derivada do afundamento intencional do gigantesco navio militar “São Paulo”, com 266 metros de comprimento, portando toneladas de amianto, além de supostas fontes radioativas e de metais pesados em seu interior, torna a jogar luzes internacionais à posição brasileira no tocante às questões ambientais e humanitárias.
Diante do risco envolvido na tarefa de reboque e da degradação das condições do casco do navio, além da recusa das autoridades em autorizar o reparo e em buscarem um estaleiro certificado para o desmonte, a Marinha do Brasil optou pelo “afundamento planejado e controlado” da embarcação, a se tornar um verdadeiro Leviatã brasileiro no fundo do oceano.
Ativistas e órgãos de proteção ambiental em todo o mundo vinham denunciando que o afundamento – possivelmente evitado - implicaria o descumprimento de pelo menos três tratados internacionais de que o Brasil é signatário (as Convenções de Londres, de 1972, da Basileia, de 1992, e de Estocolmo, de 2001) e seria uma decisão trágica, pois provocaria danos ambientais incalculáveis, causando mortes à vida marinha e deterioração do ecossistema em importantes espaços de biodiversidade.
Mas apesar da real gravidade do fato, o ex-navio São Paulo é apenas a ponta do iceberg nessa temática, pois parte do Brasil insiste em resistir à superação definitiva de problemas históricos, costumeiramente em proteção aos interesses econômicos de uma minoria.
É o que fez, por exemplo, o Estado de Goiás em julho de 2019, ao editar lei estadual autorizando a extração do amianto crisotila em Minaçu para o fim de exportação, ao arrepio da decisão plenária do Supremo Tribunal Federal de 2017, com vigência a partir de fevereiro de 2019, que havia proclamado o banimento do amianto em todo o território brasileiro, ao declarar inconstitucional o artigo 2º da Lei Federal 9.055/95, que autorizava a extração, produção, utilização, armazenamento e comercialização do amianto no País. A desvirtuação é patente, pois é óbvio que a finalidade da extração (comercialização interna ou externa) não altera os riscos da atividade, sobretudo porque a exportação depende de prévias extração, manipulação, armazenamento e transporte, vedadas por decisão do Supremo.
Esse tema voltará à pauta de julgamento do STF, a princípio marcada para 16/2/2023, ocasião em que as comunidades nacional e internacional estarão atentas.
Voltando à embarcação São Paulo, a expressão afundamento “planejado e controlado” invariavelmente nos remete ao conhecido slogan utilizado por décadas pela indústria do amianto para garantir a continuidade de suas operações, a despeito da plena ciência dos malefícios do referido mineral para a saúde humana: a do suposto uso “seguro e controlado”, como se fosse possível manipulá-lo sem risco aos trabalhadores e aos consumidores.
Como se sabe, há muitos anos a Organização Mundial de Saúde (OMS) e sua Agência Internacional de Pesquisa sobre o Câncer proclamaram inexistir limite seguro para a exposição ao amianto, em quaisquer de suas variações (inclusive o crisotila), sendo impossível o controle absoluto de uma fibra que se espraia pelo ar e é altamente cancerígena.
Por esse motivo, a Organização Internacional do Trabalho (OIT), ao estimar ocorrerem mais de 100 mil mortes por ano cuja causa são as graves e torturantes doenças relacionados ao asbesto, e ao identificar que praticamente a metade das mortes ocupacionais por câncer no mundo se devem a esse agente, classificou como catástrofe sanitária do século a continuidade da extração e comercialização do amianto pelo mundo. Nessa trilha, mais de 60 países já baniram o uso do amianto em seus territórios. E o Brasil, acertadamente, seguiu essa linha, não pela via legislativa federal, mas sim por intermédio de emblemática decisão da Suprema Corte brasileira em 2017, após a realização de audiência pública em que foram ouvidos especialistas e vítimas de várias partes do mundo.
Vale lembrar que, em abril de 2019, delegados da Missão Asiática Antiamianto, vindos do Japão, Índia e Indonésia, países que, juntos, importam a maior parte da produção brasileira de amianto, visitaram o STF. A Missão veio clamar pelo fim da exportação do amianto brasileiro para países da Ásia, de modo que não se adotem duplos padrões de proteção e para que se destine à população de outros países o mesmo respeito à vida, à saúde e ao meio ambiente que o Supremo, acertadamente, reconheceu aos cidadãos brasileiros.
Como dito antes, na temática humanitária-ambiental do amianto, o doloso afundamento do navio “São Paulo” foi apenas a ponta do iceberg. Que com ele não afunde parte da comemorada decisão do STF de banimento do amianto, fazendo emergir, a partir do epicentro brasileiro situado em Minaçu (GO), uma nova tsunami de dor, sofrimento e morte originários do mineral assassino.
O Supremo Tribunal Federal, tão altaneiro e corajoso em preservar a democracia em nosso País, no dilema lucro versus saúde e meio ambiente, certamente prestigiará as vidas humanas, estejam elas no Brasil ou no exterior, consoante diretriz estabelecida na Constituição de 1988 e em inúmeros instrumentos jurídicos internacionais dos quais o Brasil é signatário.
*Gustavo Ramos
Advogado da Associação Brasileira de Expostos ao Amianto (ABREA) e sócio em Mauro Menezes & Advogados.
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