As atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra (1939-1945) ficaram no passado, mas foram elas que conduziram à adoção, em 10 de dezembro de 1948, da Declaração Universal dos Direitos Humanos, um marco na história. A partir de então, independente das diferenças quanto à origem, gênero, condição socioeconômica e crença, os direitos que cada ser humano possuem foram estabelecidos e devem ser protegidos pelos 193 Estados-membros da Organização das Nações Unidas (ONU). Um deles é o direito à migração.
O artigo 13 da Declaração afirma que “toda a pessoa tem o direito de livremente circular e escolher residência no interior de um Estado”. Migrar é um direito internacionalmente reconhecido, estando sujeito às soberanias dos Estados. Dessa forma, os países têm o poder de decidir quem pode entrar e permanecer em seu território. A imposição de políticas restritivas à circulação e à fixação de residência aos migrantes não deixa de ser uma ofensa à dignidade humana e aos princípios de igualdade e justiça contidos na Declaração de 1948.
Embora alguns países tenham constituído uma sólida cultura de respeito aos direitos humanos, a realidade em muitas partes impõe desafios. Há violações, abusos e, inclusive, regressões. Os migrantes e suas famílias sofrem duplamente, na origem e no destino: fogem em busca de dignidade e não encontram acolhida, mas o medo e a intolerância.
Em 1990, para garantir que os migrantes tivessem seus direitos humanos respeitados, foi adotada pela Assembleia Geral da ONU a Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e de Seus Familiares. O colegiado buscava garantir a proteção dos direitos humanos, condições de trabalho justas, acesso a serviços sociais e de saúde e cooperação entre os Estados sobre a origem, o trânsito e o destino das pessoas, estabelecendo boas práticas. Infelizmente, nem todos os países a ratificaram. Os Estados Unidos, por exemplo, ficaram de fora, assim como Alemanha, Reino Unido, França, Japão, Canadá e Austrália.
Após a posse para o exercício do seu segundo mandato como presidente dos Estados Unidos, Donald Trump violou os direitos humanos dos migrantes. As medidas que adotou são implementadas com violência extrema e difundidas pelos meios de comunicação social, criando um clima de terror entre as pessoas mais vulneráveis. São elas: o encerramento da política de “captura e soltura”, que permitia aos migrantes aguardarem em liberdade as audiências sobre os seus status. A extinção do asilo para os que entravam ilegalmente, bem como o fechamento da fronteira e o início das deportações em massa. E, também, a ameaça de perda do acesso ao financiamento federal por parte das cidades-santuário que não colaboram com os escritórios de imigração.
Estima-se que Trump tenha assumido um país com cerca de 47,8 milhões de imigrantes, compondo cerca de 14,3 % do total da população. A eles, o republicano concentra a atenção e a energia do governo, como se o diagnóstico que fez para os males norte-americanos fosse derivado da presença de pessoas não naturais daquele território. Para realizar o seu objetivo de fazer os Estados Unidos grandes novamente é preciso se livrar dessa gente. E temos a estigmatização do migrante!
Erving Goffman, sociólogo canadense, oferece estudos importantes sobre a representação do eu no cotidiano e de como as pessoas respondem a ele. Em uma obra de 1963, intitulada Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada, explica que a mancha, o estigma, resulta do fato de que membros da sociedade partilham expectativas comuns sobre o que esperar de certos grupos ou pessoas. E, isso, em sua conotação negativa, leva os indivíduos a classificarem os outros como detentores de atributos socialmente indesejados. Exagerando livremente, foi algo assim que aconteceu na Alemanha e conduziu às atrocidades cometidas durante a Segunda Guerra, dentre as quais podemos lembrar do genocídio sistemático de seis milhões de judeus, de ciganos, de pessoas com deficiência, de prisioneiros de guerra soviéticos e de opositores políticos. E enquanto isso acontecia, a vida corria normal para o alemão médio, cioso de sua superioridade.
A política anti-imigração de Trump apresenta uma face desumana e violenta. Semeia o medo e impõe sofrimento às pessoas, enquanto estigmatiza um segmento social. Isso faz regredir o movimento pela consolidação universal dos Direitos Humanos e nos apresenta um cenário sombrio, no qual, talvez, algum desavisado aponte para um ser humano e pergunte: “É isto um homem?”.
*Rogério Baptistini
Sociólogo e professor do Centro de Ciências Sociais e Aplicadas da Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM)
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