O radicalismo exacerbado no ambiente virtual pode contaminar todo o tecido social e pôr em risco a incipiente democracia brasileira.
Os que nos privilegiam com sua leitura sabem que com alguma frequência manifestamos aqui uma preocupação que certamente aflige todas as pessoas sensatas: a crescente radicalização política e ideológica, especialmente nas redes sociais, fomenta as intolerâncias mútuas e suspende o debate construtivo ao desconhecer qualquer qualidade a ideias divergentes.
O fenômeno não é, obviamente, uma exclusividade nacional. Em diferentes países, inclusive naqueles social e economicamente mais desenvolvidos, a fluidez instantânea da comunicação propiciada pela internet – e, mais ainda, a autonomia com que cada indivíduo pode tornar-se uma voz audível para sua ‘bolha’ ou para milhares ou milhões – parece ter diluído fronteiras entre a ponderação dos argumentos e a virulência dos ataques e contra-ataques que aniquilam qualquer possibilidade de mútua compreensão.
Por razões óbvias, interessa-nos aqui tratar dos riscos e ameaças que essa polarização representa para a jovem e tenra democracia brasileira, cujas instituições, felizmente ainda incólumes e aparentemente sólidas, não podem ser submetidas ao estresse contínuo de uma radicalização persistente e corrosiva. Radicalização que, diga-se logo, embora se expresse nas redes sociais com crescente virulência, nada tem de ‘virtual’.
Pelo contrário, setores consideráveis à direita e à esquerda do espectro político-ideológico demonstram hoje, com contundência temerária, que apostam no radicalismo como forma de ‘simplesmente’ aniquilar as ideias das quais divergem. Aliás, pela virulência com que o fazem, se pudessem liquidariam literalmente os próprios defensores dessas ideias.
Significa dizer que, lamentavelmente, as avalanches de radicalismo despejadas nas redes sociais, ao contrário do que sugerem alguns – por tibieza intelectual ou por interesses obscuros – não são mera e pasteurizada expressão de desencanto e de revolta de indivíduos e de grupos que se retroalimentam em suas ‘bolhas’.
Muito pelo contrário, o radicalismo exacerbado no ambiente virtual é sintoma evidente de uma grave – e real e perigosa – disfunção social e até ética que, sem qualquer exagero, pode contaminar todo o tecido social e pôr em risco a incipiente democracia brasileira.
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O que causa espanto e apreensão é que, apesar das evidências da escalada desse radicalismo, detectada por agências especializadas em escrutinar as redes sociais, por inúmeros estudos acadêmicos e pela mídia tradicional, até agora não se tem notícia de que lideranças políticas e sociais tenham se mobilizado em busca de um pacto mínimo para estancar essa polarização insidiosa. Todos falam dela como se fosse um mal causado pelos “outros”, porém ninguém parece se dar conta de que suas consequências podem ser nefastas para toda a nação.
Seria rematada ingenuidade supor que os radicalismos ideológicos e político-partidários – que, exacerbados nas redes virtuais, provocam recíprocas repulsas e truncam o dialogo fundamental para o respeito às ideias e posições divergentes – possam ser superados com um passe de mágica vocalizado por alguns ‘iluminados’.
Porém, é pelo menos plausível acreditar que, em nome da sensatez, lideranças acadêmicas e sociais, artistas, intelectuais, comunicadores, digital influencers e líderes religiosos reconhecidos por sua ponderação e espírito ecumênico possam se unir em torno de uma iniciativa efetivamente comprometida em, pelo menos, reduzir a um patamar civilizado a ‘guerra aberta e socialmente dilacerante’ que a polarização instalou no país.
Obviamente, a reconhecida credibilidade desses atores e a clareza e objetividade de propósitos são condições indispensáveis para que uma iniciativa dessa envergadura possa ter chances reais de reduzir o ambiente de confrontação que, sem dúvida, hoje corrói a coesão social e pode, logo mais à frente, pôr sob sério risco as próprias instituições.
A propósito, a radicalização atingiu tal proporção que, infelizmente, os atores políticos já não podem ser convocados à tarefa urgente de moderá-la. Como toda liderança política está obviamente filiada a algum partido e, supostamente, subordinada a alguma ‘ideologia’, isso já é o suficiente, na atual e difícil conjuntura, para que seja renegada pela “legião” que a confronta nas redes sociais.
Por isso mesmo, a grave ameaça representada pela epidemia de radicalismo ideológico que, gerada nos ‘laboratórios abertos’ das redes sociais, hoje contamina substancial parte da sociedade nacional, exige prolongada e eficaz terapia. Que deve começar de pronto, pela mobilização de lideranças sensatas de fora da esfera político-partidária.
A perspectiva de que possamos chegar à campanha eleitoral de 2022 sem qualquer moderação significativa no atual cenário de batalha campal político-ideológica é, no mínimo, profundamente inquietante.
*Iran Coelho das Neves
Presidente do Tribunal de Contas do Estado de Mato Grosso do Sul.
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